segunda-feira, 19 de outubro de 2009

UMA LEITURA DE AZEVICHES

Lembrando Germano Almeida e O Meu Poeta

Que bom que foi ver-te de novo! E mesmo para me chamares de vatel valeu a pena teres vindo. E a propósito que dizes do título que proponho para os Episódios?
Guardava ainda de ti a imagem das calças de ganga e cabelo ao vento quando apareceste na porta com o mesmo sorriso. Reencontrar-te assim foi mais do que alguma vez sonhei no longo deserto onde me deixaste e se o meu corpo não traduziu toda a festa do meu espírito pela tua presença foi só pela fraqueza que ainda tenho de perder as palavras diante de ti e apenas desejar ficar olhando-te, e apenas querer acariciar o teu nariz com os meus dedos. Quanto tempo recuei vendo-te ali? Hoje já não sei se foram anos ou apenas um dia. Tanto tempo e continuas a mesma que um dia me fez pensar que afinal há outros mundos para além do nosso que corria atrás do tempo tentando por ele acertar o passo. Bem sei que apenas tinha visto os teus olhos mas para mim eras todo o mundo reunido na figura que eu vira cintilar na areia a nossa lua naquela noite em que me disseste que a ilha era demasiado pequena para os teus sonhos. Mas tu viste-me assim estático e ironica disseste que afinal já éramos dois a fuscar para a Pasárgada.
Estou no entanto em condições de garantir-te ser natural que eu tivesse ficado embriagado, porém não fusco. Um fusco não tem memória e eu lembro-me de tudo como se estivesse a acontecer neste momento: Bateste, eu abri a porta e por momentos não acreditei que os meus olhos te viam, decerto tinhas acabado de morrer em qualquer lado e o teu espírito vinha numa primeira visita. (p.314)

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

UMA LEITURA DE AZEVICHES

“Les souvenirs que j’ai de ma vie réelle ne
sont ni plus colorés ni plus vibrants que
ceux de mês vies imaginaires”
(...)
“Pour écrire l’histoire d’un autre, je colla-
bore avec ma propre vie. Qu’on ne cherche
pas à savoir ce qui, dans cette fiction, est
indubitablement moi. On s’y tromperait. Et
mes proches s’y tromperaient autant et plus
que les autres.”

(DUHAMEL,G.In Remarques sur les memoires Imaginaires _ Paris _ Mercure de France_ Sixième édition.).

Um texto equivalente em Português seria:

As lembranças que eu tenho da minha vida real não são nem mais coloridas nem mais vibrantes daquelas que eu tenho da minha vida imaginária.

Para escrever a história de alguém eu colaboro com a minha própria vida. Que não se tente descobrir, nessa ficção, o que seria indubitavelmente eu. Quem fizesse isso enganar-se-ia. E os que me são próximos se enganariam tanto ou mais ainda do que os outros.


COM ESTA CITAÇÃO, QUE É QUASE UM MANIFESTO, INICIO UMA LEITURA PARTILHADA DE MOMENTOS POÉTICOS QUE ME SÃO SIGNIFICATIVOS. RECUPEREMOS O PRAZER DO TEXTO, UM ALÍVIO QUE FOGE Á ORTOPEDIA CANÔNICA E QUE DEIXA, NA POESIA, UM QUÊ DE HUMANO. HAJA ESCAPE PARA A VIDA QUE SOMA À ESCRITA A SEMPRE MESMA VONTADE DE MIM... LIBERDADE E VOZ.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

CRÔNICAS DE MULHER

MATERNIDADE


Catorze quinze, dezasseis, ...vinte e três, vinte e quatro e meio pedaços de fita adesiva de cor laranja-rosa, para assegurar uma tomada de telefone na parede. Uma secretária e uma cadeira sozinhas, uma conversando com a outra. Na parede, logo à frente de quem entrava, o mesmo cartaz antigo, feito à mão, com as letras mais vagabundas do mundo, dizia: “Não é permitido às grávidas entrarem na Maternidade com objectos de valor. Não podem comer nem beber.” Do lado direito um outro cartaz mostrava um doente na maca, moribundo, e, ao lado dele, um braço musculoso e uma agulha enorme: “Doe sangue. Sangue é vida!”

- Cruz, credo!.

Fiquei ali sozinha, plantada, à espera que aparecesse vivalma.

A cadeira cansou-se de falar com a secretária sobre o livro velho de entradas que reclamava das folhas arrancadas no outro dia. Eis que chegam uma touca verde, uns óculos grandes um uniforme azul-claro, um par de luvas amarelas que carregavam uma mulher. Ela deixou um balde ao canto da sala com um cheiro insuportável de creolina.

- Bom dia, tudo bem? Sorrio para o rosto deformado com óculos.

Um olhar desconfiado me responde exactamente como o balde e o pano de chão.

Cara séria de um rosto bonito, que já foi simpático, mas que se fez duro. É preciso manter o respeito e a sobriedade da casa.

- “Bom dia”. Insisto. Arrisco um sorriso.

- Bom dia. Ela responde, muito seca.

- Por favor, eu queria saber de uma doente que deu entrada aqui ontem para Ter filho

- Visita só às três horas da tarde.

- Sim, obrigada.

Tento de novo.

- Mas é possível saber como ela está? O nome dela é Maria Sábado Tavares.

- Sinhora, N fla Nha ma visita é só di tardi.

- Ok. Ma N kre sabi si ê ka mesti nada. Por favor! Nha faze-m es favor, li, Deus ta pága nha (Mais uma vez utilizo o Santo Nome de Deus em vão) Si djê tem fidju, si mininu sta dretu (matxu ô femia)...

- Nomi?

- Célia Reis.

- N fla Nha, nomi di doenti.

- Ah, desculpa! Maria Sábado Tavares

- Di undi?

- Di Salinero.

- Nha Spéra.

Uma senhora de azul passa com uma maca para fora.

- P....! Krê ê só mi kês ta odja p-ês manda!

Outra grita com as parturientes:

- Eh, suas porcas! Não deixem pingar o sangue no chão. Concerteza não fariam nisso se estivessem na vossa casa. Quem sujar o chão, faz favor de limpar. Aqui vocês não têm criada. Pensam que a gente é doida ou quê?

- Vá, Dona, Nha toma baldi ku panu nha limpa kau ki nha xuxa!

Mais tarde fiquei a saber que a porca que deixava o sangue cair no chão era a minha sobrinha que tinha acabado de dar à luz. E que a primeira coisa que ela fez depois de Ter parido um menino de 4 quilos e levado 10 pontos foi limpar o chão.

Essa gente tem alma?

De repente, voltam o rosto deformado a touca e os óculos. As luvas vieram arrastadas, mas já o balde continuava quietinho no seu canto. Obediente. Não fosse a servente ralhar com ele também.

- Sábu já teve um filho macho. Ela disse que precisa de camisa de noite, fraldas para criança e roupinha de menino. Desde as 3 da madrugada que o menino está nu prite. A senhora faz favor de trazer lençol também porque aquele lençol nosso que pusemos ela já encheu ele de sangue.

- Trouxe tudo. Agora lençol tenho que esperar abrirem as lojas para comprar. Não têm nenhum do hospital que a possam emprestar?

- Eu já lhe disse que ela sujou. Temos outras doentes. Outras com febre. Cesarianas. Ela é parto normal. Mas traz lençol porque ela está no corredor, não encontrou cama e lá faz muita corrente.

- Tenho que esperar até às nove horas?

- Tem uma senhora aqui que vende tudo. A Dona tem dinheiro?

- Chama a mulher que eu falo com ela.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

BRASIL BRAZUCA

(Aprendiz de blogueira, cortei um pedaço do tributo ao Brasil)

Cá vai:

Eu gosto de Você, Brasil,

Porque Você é parecido com a minha terra.
Eu bem sei que Você é um mundão
E que a minha terra são
dez ilhas espalhadas no Atlântico,
sem nenhuma importância no mapa […]


É o seu povo que se parece com o meu,
É o seu falar português
que se parece com o nosso,
ambos cheios de um sotaque vagaroso
de sílabas pisadas na ponta da língua
de alongamentos timbrados nos lábios
e de expressões terníssimas e desconcertantes.


É a alma de nossa gente humilde que reflecte
a alma de sua gente simples,
ambas cristãs e supersticiosas,
sentindo ainda saudades antigas
dos serões africanos […]


Você Brasil é parecido com a minha terra,
as secas do Ceará são as nossas estiagens,
com a mesma intensidade de dramas e renúncias.


Mas há uma diferença no entanto: é que os seus retirantes
têm léguas sem conta para fugir dos flagelos,
ao passo que aqui nem chega a haver os que fogem
porque seria para se afogarem no mar […]


[…] Havia então de botar uma fala
ao poeta Manuel Bandeira,
de fazer uma consulta ao Dr. Jorge de Lima
para ver como é que a Poesia receitava este meu fígado tropical
[bastante cansado.


Havia de falar como Você,
Com um i no si
“si faz favor”,
De trocar sempre os pronomes para antes dos verbos
“mi dá um cigarro”?
[…]
(extratos de um poema de Jorge Barbosa dedicado a Ribeiro Couto)











Brasil, brasileiro,a Voz de Bana ou de Jorge Barbosa, nas canções crioulas ou nos clássicos da Claridade, lembro o lugar-Brasil que se faz em Cabo Verde. Nação e País estão de Parabéns neste 7 de Setembro e nos gritos de Ipiranga que, “dia a dia, dor a dor, amor a amor”, cada brazuca vem entoando nas sete partidas do mundo: Independência e vida!

BRASIL BRAZUCA

“Gigante pela própria natureza/Verás que um filho teu não foge à luta/Terra adorada, entre outras mil és tu Brasil ó Pátria amada”


ES NOS TERA PIKININ É UM PADASINHU DI BRASIL


(Nossa Terra pequenina é um pedacinho de Brasil)

PARABÉNS! Independência é Vida!

A palavra à Poesia verdiana que cantou um Mano-velho:


Brasil ki nos tude nô tem na peite


Brasil ki nô ta senti na sangi


Brasil,


Bo ê nosu irmão!


‘Sim Kma nôs Bo ê morena…


Brasil No krê-bu txeu, nô kre-bu txeu di korason .
(Brasil que todos nós temos no peito/ Brasil que sentimos no sangue/ Brasil tu és nosso irmão/ Assim como nós, tu és moreno/ Brasil te amamos muito, te amamos muito de coração)

NOTA DE ABERTURA – SUMARA KONBERSU

BEM-VINDOS! - NHÔS TXIGA!

Dizem-me os jornais que chove em Cabo Verde: Forti sábi!

Se a esperança d’azágua se renova a cada dia e a boa nova da chuva é promessa de ano bom, então à minha boca vêm palavras como milho, fartura, feijão, saúde, festas e certeza.

Que o nosso Cabo Verde se faz em segunda sementeira: na monda e na ramonda; e que as bonecas de milho, as cordeiras de feijão, o milho verde assado e a katxupa de cada dia se cozinham, nas três pedras do fogão, no tomar a bênção e no rabo da enxada.

Semear e colher, com o coração de pescador e a “certeza do chão que pisas”, está também nos livros, cada vez mais, cada vez sim, nos livros. Porque é nos livros que somos! _ e foi contada a nossa história de azeviches. E, nos livros, a morabeza se dá a conhecer para o mundo.

Chove em Cabo Verde…

O Contador de Histórias me disse que choveu também em S. Vicente. Sinal de boas águas. De Pe. António Vieira a Mané Quim, haja Testamentos de muitos Napumocenos para iluminar a nossa história de azeviches. E haja também Gracinha(s), que herdem, no feminino, uma estória para se contar: com as nossas próprias cabeças e com os pés bem finkados na TERRA: Terra chão, Terra mar, Terra céu.

É que, segundo Princezito, mar é prolongamento de terra, só que na versão molhada. Para verdianos e crioulas, nosso mar e nossa terra… é tudo uma coisa só. E os nossos sonhos, nosso orgulho… é tão grande, porque amparados por mil águas: o doce da chuva e o salgado do mar.



Fala Ovídio, que o mês é teu:


POEMA SALGADO

Eu nasci na ponta-da-praia

por isso trago dentro de mim

todos os mares do Mundo



Meu correio são as ondas

que me trazem e levam

recados e segredos



E meus bilhetes

(meus bilhetinhos de saudade)

são suspiros salgados

que as sereias recolhem

da crista das ondas



Nas conchas e búzios

de todos os mares do Mundo

ficaram encerradas

minhas canções de amor



Que eu nasci na ponta-da-praia

Por isso trago dentro de mim

todos os mares do Mundo.



(Ovídio Martins 1928-1999)

…………………………………

MAR

Oh mar oh mar

Amin ta ba mar nta ba mar

Nta ba mar nta murgudja na azul

(…)

Mar é um purlongamentu di terra

En forma di modjadu

Mar é sima biku di um mulata

Xeiu di lágua di txoru di sodadi

Di un arguen kê pista si abrasu ki bai ki ka bem

(…)

Ami na ña tera kada kriolu tem um padás di

Spiga dentu si kurasan

Ali Lua é brinku pexera



Sol é rologi pastor

Strela é amiga Cesária

Bentu é ventiña koitadu. Ayan


Li ki poisia ta pegadu na redi

Mininu ta fasedu na txada

Mudjel ta marianu kabê

(…)

Mar bo di longi bô é bunitu

Mar di pertu bo é bunitu

Mar pa riba mar tambi ê bunitu

Karamba na fundul mar go ké bunitu



(Princezito, “kasador di poema y piskador di inspirason” in Spiga 2008)



Pensatempo glob 1



Niterói-RJ, 5 de Setembro de 2009